Java: De Eletrodomésticos Para Mais de 3 Biliões de Dispositivos ao Redor do Mundo
Desde o seu nascimento nas instalações da Sun Microsystems no estado da Califórnia, até à sua estadia em diversas áreas da tecnologia a nível global, a linguagem Java percorreu um caminho notável. A sua história começa longe dos centros de dados empresariais e da web moderna, mais precisamente no seio de um projeto visionário concebido com foco em eletrodomésticos inteligentes.
Criada na década de 1990 por James Gosling e sua equipa na Sun Microsystems, a linguagem Java foi inicialmente concebida para criar programas multiplataforma.
Até então, os programadores criavam software tendo em conta uma máquina ou família de processadores específicos. Isso não era necessariamente um problema, pois assim foi durante cerca de meio século. Porém, com o advento da World Wide Web e da Internet, James Gosling previu que, num futuro próximo, os computadores não ficariam restritos a grandes salas de alta segurança, com uso exclusivo de grandes empresas e universidades. Ele percebeu que chegaria um momento em que os eletrodomésticos que temos em casa estariam todos conectados e partilhariam informações, e que a forma de programar na altura criava uma certa barreira para tal. Como os programas eram direcionados para um sistema operativo ou família de processadores específica, seria muito difícil manter esta abordagem. Além de custar muito tempo e esforço aos programadores, esta abordagem não garantia que os programas funcionassem da mesma forma em ambientes diferentes. Foi então que deu-se início ao Projeto Green, que começou a preparar uma ferramenta que permitisse criar software independente da plataforma. O projeto começou em 1991 e, em apenas 18 meses, já havia um protótipo funcional desta ferramenta. Uma linguagem que permitia executar o código sem necessidade de compilá-lo para cada ambiente. Com esta nova linguagem, que chamaram Oak (orvalho em inglês, por causa de um orvalho que havia do lado de fora do escritório do líder da equipa), utilizaram para programar o Star7.
O Star7 foi um dispositivo criado como uma demonstração prática do potencial da nova linguagem. Este dispositivo foi concebido para interagir com televisores e controlar outros eletrodomésticos. A ideia era demonstrar como um software poderia correr num ambiente de hardware específico sem precisar ser reescrito para cada nova plataforma. Pode assistir a demonstração aqui.
Com o sucesso do Star7, a equipa percebeu que a linguagem que criada tinha potencial para muito mais do que apenas eletrodomésticos inteligentes. Foi assim que nasceu a linguagem Java como o mundo a conhece hoje.
Mais adiante, com a popularização da Internet, cada vez mais dispositivos juntavam-se a esta rede mundial e com isto a evolução do hardware, o que fez com que cada vez mais diferentes arquiteturas e sistemas operativos fossem criados, o que tornou clara a necessidade de uma ferramenta multiplataforma para se estabelecer neste ambiente e garantir o funcionamento correto do mesmo. Foi nesta altura que o Java ganhou destaque devido ao seu princípio de independência de plataforma, princípio que foi introduzido pela sigla WORA (write once, run anywhere – escreva uma vez e rode em qualquer lugar). O Java encontrou na Web o terreno fértil para crescer.
A promessa de aplicações interativas que podiam correr diretamente nos browsers catapultou a linguagem para o centro da revolução digital dos anos 90. Devido a sua sintaxe muito familiar, robustez, eficiência e segurança, o Java foi se tornado cada vez mais a escolha de muitos desenvolvedores no desenvolvimento de aplicações, e esta teve muito impacto na criação de aplicações back-end e empresariais.
À medida que os anos avançavam, a linguagem começou a consolidar-se como uma das linguagens de programação mais utilizadas no mundo empresarial, ganhando mais força em diversas áreas de desenvolvimento como em servidores web e sistemas distribuídos. A Sun Microsystems continuou a investir fortemente na evolução da plataforma, tornando-a cada vez mais robusta e preparada para grandes desafios.
Em 2002, com o lançamento da versão 1.4, o Java começou a responder a exigências cada vez maiores do mundo da computação em rede. Foram introduzidas bibliotecas que melhoraram significativamente o desempenho de operações com ficheiros e redes. Esta versão também trouxe avanços na segurança, áreas cada vez mais críticas com a expansão da Internet.
Um dos maiores saltos evolutivos na história da linguagem ocorreu no lançamento da versão 5. Esta versão trouxe muitas funcionalidades que tornaram a linguagem mais legível e expressiva. O JDK 5 introduziu funcionalidades como enums, tipos genéricos, anotações e o tão esperado laço for-each. Estas funcionalidades não foram apenas melhorias sintáticas, elas abriram o caminho para o surgimento de frameworks poderosos. Nesta altura já haviam frameworks que facilitavam o desenvolvimento de aplicações como J2EE e o Spring Framework. Estes e outros frameworks que dominaram o desenvolvimento de serviços web e aplicações empresariais.
Nos finais de 2006, ainda sobe a administração da Sun Microsystems, o Java tornou-se open-source. Esta foi uma das alterações mais inovadoras da história do Java. Ao torná-lo open-source o JDK (JDK) transformou-se no OpenJDK, um projeto impulsionado pela comunidade, com a Oracle como maior colaborador. Esta mudança levou a um processo de desenvolvimento mais colaborativo, a um grupo maior de colaboradores e ao aparecimento de várias distribuições como a Azul Systems (Zulu), Amazon Corretto e a AdoptOpenJDK. Este gesto foi fundamental para consolidar a linguagem como um pilar confiável.
Nos princípios de 2009, uma reviravolta voltou a acontecer: a Oracle anunciou a aquisição da Sun Microsystems e com ela todas as marcas em seu nome, concluindo a aquisição em janeiro de 2010. Este evento gerou receios na comunidade Java, que temia uma possível perda do espírito open-source e da liberdade tecnológica que vinha a ser construída. No entanto, apesa da Oracle ter assumido um controle mais rígido sobre certos aspetos da linguagem e da marca Java, também assegurou a continuidade no suporte e na evolução da plataforma, mantendo o OpenJDK como projeto principal para o desenvolvimento padrão do Java.
Durante os anos seguintes, o Java passou por um período de transição importante. O JDK 9 introduziu uma das mudanças estruturais mais profundas desde a criação da linguagem: o sistema de módulos. Este novo modelo modular permitiu que as aplicações fossem mais facilmente segmentadas, melhorando a organização do código, o tempo de arranque e o consumo de memória. Esta funcionalidade permite separar a aplicação em módulos com separados, além disso, permite com que os desenvolvedores escondessem a lógica da aplicação ao expor apenas partes específicas para outros módulos.
A partir do JDK 10, o período de lançamento, que até então era muito lento e irregular, o que levava a longos períodos de espera entre melhorias, mudou para um ciclo semestral. Desde então a Oracle tem lançado uma nova versão do Java a cada 6 meses.
Ainda nos anos 2000, a Android Inc., na altura uma startup pequena e ambiciosa, nascida da visão de alguns engenheiros com o desejo de mudar a forma como interagimos com dispositivos móveis. Naquela época o mercado de telemóveis era dominado por fabricantes estabelecidos, como a Nokia, BlackBerry e Palm, cada um com seus próprios sistemas operativos proprietários. A ideia inicial da Android não era focar-se em em smartphones no sentido que conhecemos hoje, mas sim um sistema operativo mais inteligente para câmeras digitais. No entanto, a visão rapidamente se ajustou para o mercado de smartphones, que apresentava um potencial de crescimento maior.
Apesar das ideias inovadoras, a Android Inc. entrentava desafios financeiros, como é comun em startups. E foi então nesse cenário que a Google entra em cena e, em Agosto de 2005, a ela adquiriu a Android. Isto, apesar de ter gerado pouca notícia, representou uma jogada estratégica e crucial da Google na sua ambição de expandir-se para o mercado mobile.
A partir desse momento a equipa da Android começou a trabalhar para a Google, continuando a desenvolver o sistema operativo que mais tarde receberia o mesmo nome. A Google percebeu o pontencial de um sistema operativo mobile para estender a sua influência na internet.
A escolha do Java como linguagem principal para o desenvolvimento de aplicações no Android não foi uma decisão aleatória. Quando a Google anunciou ao mundo em 2007 e lançou o primeiro SDK (Software Development Kit) em 2008, a decisão de usar o Java foi um fator fundamental. O Java já era uma linguagem bastante popular e amplamente conhecida por milhões de desenvolvedores em todo mundo. Isto acelerou a adoção da plataforma Android e incentivou uma vasta biblioteca de aplicações. De então, a Google tem investido muito na linguagem e outros desenvolvedores Java ao redor do mundo viram no Android uma oportunidade para reutilizar o seu conhecimento num novo território.
A medida que os smartphones têm se tornado mais comuns e o número de dispositivos Android ao redor do mundo aumentava, a demanda por aplicativos para este ambiente também crescia, e com ela o uso da linguagem Java. Hoje, estima-se que há cerca de 3 biliões de dispositivos Android ativos. Porém, o Java hoje já não é a linguagem de programação principal para o desenvolvimento Android. Em 2017, a Google anunciou no seu evento anual, o Google I/O, que a linguagem oficial para criar aplicativos Android passaria a ser o Kotlin. Esta transição foi um processo notável e, em grande parte bem-sucedido. Desde então a Google começou a promover fortemente o Kotlin para o ambiente Android.
O ambiente mobile não foi o único onde o Java aumentou a sua visibilidade. Durante este período de crescimento do Java no Android, diversos outros sectores tecnológicos passaram a adotar o Java, reconhecendo-a como uma linguagem madura, segura, eficiente e com uma vasta comunidade de suporte. Esta tendência consolidou o Java como uma das principais escolhas para sistemas distribuídos, aplicações empresariais, aplicações financeiras, telecomunicações e, sobretudo, para o desenvolvimento de serviços web escaláveis.
Frameworks como o J2EE e o Spring foram, nessa altura, sujeitos a múltiplas transformações estruturais, com o objetivo de reduzir a complexidade, melhorar a produtividade dos programadores e alinhar-se às novas exigências do mercado. A evolução deu-se no sentido de arquiteturas mais modulares, menos intrusivas e mais preparadas para o paradigma de micro-serviços, que viria a dominar a cena tecnológica.
O J2EE que era, e continua a ser uma plataforma fundamental para desenvolvimento empresarial, foi criada pela Sun Microsystems como uma extensão da plataforma Java SE (Standard Edition), introduzindo APIs e componentes de alto nível. Com a aquisição da Sun pela Oracle, o J2EE passou a ser mantido por esta, que liderou a evolução da especificação sob o nome Java EE (Enterprise Edition). No entanto, as críticas à rigidez e burocracia de certas abordagens levaram ao surgimento e adoção crescente de alternativas como o Framework Spring.
Em 2017, numa viragem estratégica, a Oracle decidiu transferir a posse e manutenção da especificação Java EE para a Eclipse Foundation. Este gesto marcou o início de uma nova fase na vida do framework, que passou a chamar-se Jakarta EE, por motivos legais relacionados à marca registada "Java". Esta mudança teve um efeito significativo, abriu caminho para uma liderança mais colaborativa, permitindo que a comunidade participasse ativamente nas decisões técnicas e evolutivas da plataforma. Esta nova fase do Jakarta EE trouxe simplificações notáveis, como a remoção agressiva de dependências antigas, a modernização do ambiente de desenvolvimento.
Paralelamente o Spring continuava a evoluir com forte adoção na indústria, que levou ao Spring Boot, que oferecia uma abordagem mais direta, alinhada com as exigências modernas de desenvolvimento rápido, mínima configuração e fácil escalabilidade.
O Spring Boot surgiu como uma evolução natural do Framework Spring, tendo como objetivo central eliminar a complexidade associada à configuração tradicional de aplicações Java, em particular no estágio inicial do desenvolvimento, permitindo que os programadores pudessem arrancar um serviço completo com um mínimo esforço e configuração manual.
O Spring Boot trouxe consigo uma proposta inovadora e pragmática: a convenção sobre configuração, integração automática de dependências e uma estrutura que se adapta bem a micro-serviços, arquiteturas reativas e ambientes conteinerizados. Esta abordagem mais leve e produtiva no desenvolvimento Java permitiu que muitas empresas a acelerassem a entrega de soluções resilientes.
A Netflix, uma das maiores plataformas de streaming do mundo e um verdadeiro caso de estudo na aplicação prática e avançada do Java, tornou-se conhecida não apenas pelo seu conteúdo, mas também pela sua arquitetura técnica altamente sofisticada. Para responder à escalabilidade massiva exigida pelo seu modelo de negócio global, a empresa adotou uma arquitetura de micro-serviços frequentemente desenvolvida em Java.
Ao longo dos anos, a Netflix contribuiu ativamente para a comunidade Java, com um conjunto de bibliotecas e ferramentas open-source que foram amplamente adotadas por outros projetos. Entre essas ferramentas encontraram-se o Eureka, Ribbon, Hystrix, Ribbon e o Zuul, todos fortemente integrados no ecossistema Spring. Estes componentes serviram de base para o Spring Cloud, uma extensão do Spring Boot voltada para sistemas distribuídos, onde a gestão de configuração centralizada, resiliência e a escalabilidade são essenciais.
O uso do Java pela Netflix é uma forte demonstração da capacidade da linguagem de suportar sistemas críticos e de larga escala. A escolha do Java por empresas como a Netflix, Amazon, LinkedIn e Twitter valida a robustez da linguagem, a fiabilidade da JVM e riqueza de seus frameworks.
Esta adoção em ambientes de altíssima exigência também influenciou fortemente a sua presença em sistemas baseados em nuvem. Serviços como AWS, Google Cloud e o Azure oferecem suporte dedicado da linguagem.
Hoje, a linguagem Java não está apenas presente em dispositivos móveis e servidores web. Ela está presente nos cartões de crédito e débito, sistemas bancários, caixas automáticos, está presente também em eletrodomésticos inteligentes, carros, Big Data e Ciência de Dados, e até mesmo na base de algumas soluções de inteligência artificial.
O Java evoluiu para muito mais do que apenas uma linguagem: é um ecossistema completo que continua a impulsionar a inovação em quase todos os aspectos da tecnologia moderna. A sua capacidade de se reinventar e permanecer relevante num cenário em constante mudança solidifica o seu legado como uma das linguagens de programação mais impactantes da história.
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